quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Paisagem de chuva

Ele dormia um sono profundo, enrodilhado em seus sonhos, rolando suave sob lençóis de matéria sutil, tênue, como o som de sua respiração, contente, leve, impossível. Devia estar cercado de paisagens matizadas de céu e de sol, quarto-estado de matéria, densas, vivas, bailantes como superfície de lago em que se atira; paisagens em que se estira, reais, absolutas, paisagens de um dia cumprido, feito.

Eu o admirava, como quem admira a mais prata das luas noites-adentro, a mais platina das estrelas a fio de noites cortadas, a frio de noites inundas -- eu em mim dessa água escura, poço ao luar, açude ou foz, limpa-límpida, azul-preto profundo, prateado inquebrável, cristalino; e tem gente que nasce água-pra-nuvem; mas eu não, eu não sublimo a mim mesma, sou água de fundo.
Sou assim para ele assim lençol, seda e toda, por onde sua barba me desfia, me acaricia dentro da pele a dentro, e me areja, superfície de areia salpicada de chuva.

Mas eu fico assim ao seu lado por sobre seu sono, rasa no raso da noite. Sou superfície e sou pele, sou corpo que não precipita e páira. Tudo aquilo me enche de um tanto que não suporto, não entendo. Tudo é de uma leveza que pesa tanto no meu coração, no fundo. Pressão e silêncio, como de uma manhã que se anuncia e não vém, mas vém se a deixamos pra lá...

No entanto, sinto um pouco de movimento nascer no fundo -- meu fundo é céu e sol também. E começo, então, por me existir para fora, ao encontro dele, água de chuva que corre, pelas paisagens de sono densas, água que o arrepia e o acorda, abrindo seus olhos de volta, para minha noite deserta, fria, fria por sobre sua planície de sonhos que se desfaz agora. E ele me vê em soluços, e me abraça, e me traz do fundo de meu fundo pro seu calor, embora um pouco assustado, porém azul e aberto... 



antônio bizerra

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