quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

[... até o fim da ladeira]

Respiro fundo: céu e chão em meus pulmões. Respiração mundana, plena. Cinza e azul, meu sangue, cinza-azul, poeira e nuvem. Então expiro, repleto desse tudo, repleto desse mundo.

A palavra tem que ser essa coisa cheia de espírito, fôlego, vida. Uma vida que enche as veias, o coração. Uma vida líqüida, fluida-cristalina, numa dinâmica fluida, galopante. Tudo que é imaterial vai se condensar no sangue, como tudo que é invisível vai se sentir na pele. Então, o sangue é isso tudo, esse tudo, hidrodinâmica escondida que nos faz escalar ladeiras imateriais, ladeiras de uma ascese mais que lenta.

E para o mais a vida nos dá pés de Mercúrio para cruzarmos esse tempo de testemunho, o maior traslado que nos cabe fazer, para contarmos, mais a frente, ainda em tempo, ainda, as agruras e penas de nossa travessia. Pés rápidos para uma trajetória bípede, olhar lento para palavras múltiplas. Nossas marcas no tempo, essa areia que apaga. Ao inverso do tempo, as pegadas na areia do espírito, que é mais terra porque chão, que é mais lama porque vida.


Pela ladeira um ônibus cheio de gente se esgueira agora, devagarinho como boi no inclinado de uma paisagem, descendo -- mas esse boi nunca está descendo quando olhamos. E dentro do ônibus muitos olhares surpreendidos -- comigo? escrevendo na padaria... apesar de conhecerem já o seu itinerário (apesar de conhecerem já o seu destino?).

Pensei em Heráclito...
Sim: no nascer do pensamento, até o fim da ladeira.



Ouro Preto, 11 de novembro de 2010


antônio bizerra

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Paisagem de chuva

Ele dormia um sono profundo, enrodilhado em seus sonhos, rolando suave sob lençóis de matéria sutil, tênue, como o som de sua respiração, contente, leve, impossível. Devia estar cercado de paisagens matizadas de céu e de sol, quarto-estado de matéria, densas, vivas, bailantes como superfície de lago em que se atira; paisagens em que se estira, reais, absolutas, paisagens de um dia cumprido, feito.

Eu o admirava, como quem admira a mais prata das luas noites-adentro, a mais platina das estrelas a fio de noites cortadas, a frio de noites inundas -- eu em mim dessa água escura, poço ao luar, açude ou foz, limpa-límpida, azul-preto profundo, prateado inquebrável, cristalino; e tem gente que nasce água-pra-nuvem; mas eu não, eu não sublimo a mim mesma, sou água de fundo.
Sou assim para ele assim lençol, seda e toda, por onde sua barba me desfia, me acaricia dentro da pele a dentro, e me areja, superfície de areia salpicada de chuva.

Mas eu fico assim ao seu lado por sobre seu sono, rasa no raso da noite. Sou superfície e sou pele, sou corpo que não precipita e páira. Tudo aquilo me enche de um tanto que não suporto, não entendo. Tudo é de uma leveza que pesa tanto no meu coração, no fundo. Pressão e silêncio, como de uma manhã que se anuncia e não vém, mas vém se a deixamos pra lá...

No entanto, sinto um pouco de movimento nascer no fundo -- meu fundo é céu e sol também. E começo, então, por me existir para fora, ao encontro dele, água de chuva que corre, pelas paisagens de sono densas, água que o arrepia e o acorda, abrindo seus olhos de volta, para minha noite deserta, fria, fria por sobre sua planície de sonhos que se desfaz agora. E ele me vê em soluços, e me abraça, e me traz do fundo de meu fundo pro seu calor, embora um pouco assustado, porém azul e aberto... 



antônio bizerra