Este blog é sobre o silenciar. Quem aqui entrar, para e escuta: o silêncio não é vazio, nem mudo. Num mundo de tantos ruídos, tão necessário se faz que retornemos a esta casa tão sólida de nós mesmos, o silêncio, casa de paredes de vento, casa que vai dentro e se torna nosso abrigo, infalível, contra tanto tumulto, barulho, ruído... Um abraço, antônio bizerra.
sábado, 30 de novembro de 2019
TRÊS MINI-CONTOS
A BONDADE DA CORÇA
Conta uma lenda que uma corça vinha por uma trilha no bosque, muito feliz por apenas estar, sob uma tarde de sol ameno, dessas tardes que o sol retina notas tão suaves por entre as folhas das copas, quando de súbito assoma-se à sua frente um terrível demônio, medonho como a mais medonha criatura que nunca nem estivera em um sonho medonho da gente qualquer. Então, muito serena, com seu olhar doce e tácito, a corça pausa o seu passo e passa a observar o demônio, que logo passa a fazer toda sua encenação pavorosa, bradando em horripilante tom que se a corça prosseguisse ele iria fulminá-la com um raio terrível. E enquanto o demônio dava tudo de si, tal como fosse o pior dos atores, a corça apenas observava com doçura e condescendência as evoluções capengas e afetadas do desengonçado demônio que recorria a todos os seus recursos de efeitos especiais para promover na alma da corça um mínimo de susto que fosse ou, ao menos, uma hesitação qualquer que cintilasse pelo doce olhar da corça, porém, debalde. Então, após muito se esforçar, o demônio começa por diminuir o ritmo e a dinâmica de sua apresentação teatral e simplesmente para e fica a olhar para a corça que continua a fitar o demônio e, apascentado e admirado com a corça, abre passagem em seu caminho e permanece ali, a observar a corça seguir em paz e calmaria pela trilha, sob aquela tarde de sol ameno.
( 20 de novembro de 2019)
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A VAIDADE DO DRAGÃO
Conta-se uma lenda que o dragão era um mago exímio e cujo poder deixava a todos maravilhados. Todos os dias o dragão realizava prodígios que outros magos tentavam e tentavam, mas não se equiparavam nunca à altura dos feitos do dragão. Vinham magos até mesmo de outros reinos, reinos vizinhos e reinos distantes, porém nunca surgia alguém páreo às suas façanhas. E ao contrário do que sempre nos fora contado, o dragão não era um ser do mal e sua única pecha era mesmo ser muito vaidoso. Um dia, porém, surge um forasteiro, um homem realmente muito estranho, com vestes muito estranhas, oriundo talvez de terras desconhecidas e talvez até mesmo de terras nenhumas, conforme rezassem certas crenças do povo deste reino, e esse homem lança um desafio ao dragão, sabendo de antemão da fraqueza de nosso fabuloso mago de coração puro e terno: "se vós sois mesmo um grande mago, certamente conseguiríeis transformar-se em uma libélula", e o dragão, esforçando-se por não dar ouvidos àquele estranho homem, prosseguia em suas exibições e manobras fantásticas até que, em um dado momento, ele olha fixo nos olhos do forasteiro de olhar firme e hipnotizador e diz: "duvidas?"; "duvido!", e, então, o dragão concentra suas forças, recita palavras misteriosas e, de um movimento vigoroso e rápido arremessa algo ao chão que explode em uma fumaça densa e assustadora que o encobre de todo e, por fim, perfaz-se o encanto... e eis que até hoje as libélulas povoam os bosques e os jardins e, o dragão, este, somente o nosso coração e o nosso imaginário.
(30 de novembro de 2019)
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A INCERTEZA DE ORFEU
Conta-se a lenda que Eurídice, a musa de Orfeu, em uma bela tarde enquanto caminhava pelo bosque, é atacada por um fauno que desejava possuí-la e, assim, em desenfreada fuga, ela é mordida por uma víbora no tornozelo e morre. Orfeu, inconformado com o duro destino de ter de viver sem a sua amada, resolve descer à mansão de Hades para tentar o que nunca a nenhum mortal fora jamais permitido: reaver da morte uma pessoa tão querida. E conforme Orfeu fosse poeta e músico tão exímio, ele consegue tocar o coração frio do senhor das gélidas moradas do Inferno que permite ao divino músico que este conduza pelas trilhas áridas e pedregosas do Érebo sua amada até a superfície da Terra porém com uma fatal condição: "tu caminharás à frente de tua amada que o seguirá em profundo silêncio; se tu olhares para trás antes de chegar à superfície, ela voltará para cá e tu a perderás para todo sempre". Assim, segue o nosso herói sua ansiosa e sôfrega subida do Érebo, tendo sua amada seguindo-o em assustador silêncio. Com o passar das horas, Orfeu sente-se cada vez mais compelido pela incerteza a olhar para trás. E, assim, tantas vezes ele hesita, mas se contém, e tantas vezes porém que ele se contém que, finalmente, dominado pela incerteza, ele torna sua cabeça para trás e um grito pavoroso ecoa pelos vales do Inferno enquanto sua amada é arrebatada de volta ao Hades, e nosso ansioso herói retorna sozinho e desconsolado ao mundo.
( 9 de dezembro de 2019)
antônio bizerra
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