terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Éter


Um amigo meu de infância disse outra vez na rua, quando éramos pequenos: olha o cheirinho de hospital.
Então, lá vinha ele, lá da esquina, com seu porte de pé-grande, gigante e distante de tudo, com sua barba que não tinha mais tamanho, imerso no seu universo etéreo. Vinha com passadas bem pesadas, pausadas, com sua perna de mamute, inchada e venosa.
Outra vez ele abordou meu pai, muito educadamente. Apesar de se deslocar devagar, meu pai o vencia no quesito lentidão e, portanto, lhe foi fácil se aproximar e passar o braço sobre os ombros de meu pai, como se fosse um amigo de longa data. Ato contínuo, estendeu-lhe a mão para pedir, com toda polidez, uns trocados. Simplesmente, na mão do gigante estava o lencinho que ele usava para conduzí-lo às mais altas esferas do sonho, e até mesmo da vigília. Meu pai, embriagado com o cheiro, pega de uns trocados no bolso e lhe dá de bom grado, ato lúcido, no entanto. O gigante agradece e segue seu caminho.
Durante muito tempo vi esse personagem vagar por Copacabana. Aliás, desde pequeno eu o via, com seu lencinho colado no nariz tal como uma máscara de aviador. E lá ia ele voando pelas ruas do bairro. Taí uma pessoa que não precisava dormir pra sonhar que estava voando, ele realmente o fazia: corpo mamute colado ao chão, o olhar de nuvem na imensidão.
Na nuvem de incerteza que só um personagem como tal deixava pelo caminho, pairáva uma suposição que é própria das especulações do povo perante figuras tão enigmáticas: dizem que ele pertencera a uma família bem abastada, mas uma decepção amorosa o arremessara ao revés e ao rés de sua existência. Sim, o vício é o lar dos desesperados.
Um dia recebi uma notícia: o gigante passara dessa para melhor. Lembro-me de que não me abalei com a nova… mas senti um incômodo. Sim: o bairro mudara, e as mudanças costumam incomodar, de início. Os lugares mudam quando se muda a rede dos transeuntes, o ir-e-vir daqueles que compõem o espaço: nós. (Aprendi isso com um amigo meu que se formou em Geografia). Foi no cruzamento da Barata Ribeiro com a Constante Ramos, bem em frente ao Bolonha, onde o gigante teve seu corpo arrebatado por um automóvel.
Daí em diante, nunca mais sentiríamos o cheirinho de hospital.
E talvez esse fato pertencesse somente ao meu tempo de infância mesmo.
Agora já faz tempo que ele realmente voa por outras esferas, no etéreo outro e eterno, e não mais aqui somente, e no éter…



antônio bizerra